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Não são coisas do cotidiano, só parecem

Texto por Giancarlo Hannud


Ao longo das quase duas décadas em que Eleonore Koch se radicou em Londres – de 1968 a 1989 –, período ao qual remonta a maior parcela de seus trabalhos aqui reunidos, a artista atuou, em paralelo a sua produção artística, como intérprete e tradutora na Scotland Yard, sede central da polícia metropolitana da capital britânica. Nas salas de interrogação e nos corredores da antiga sede (hoje demolida), fazendo as vezes de ponte comunicativa entre acusados e acusadores, investigados e investigadores, teve a chance de ver a humanidade em toda a sua diversidade, o que não pouco deve ter lhe adicionado de conhecimento humano. A imagem da artista prestes a adentrar numa sala de interrogação ainda vazia, porém pejada de incontáveis presenças e dramas anteriores àquele momento, parece ser um bom lugar – pelo que ele nos sugere das bifurcações sensíveis presentes na obra de Koch – desde onde lançarmos um rápido olhar sobre os desenhos, estudos e têmperas incluídos nesta publicação. Pois, não obstante o contínuo apontar do silêncio e da quietude de sua obra por todos aqueles que dela se ocuparam, parece certeiro dizer que sua sensibilidade se apresenta mais completamente na percepção da angustiada tensão de suas pinturas – despovoadas cenografias de dramas no limiar de um desenrolar. Ausentes por completo da presença humana, seus trabalhos ainda assim apontam para a possibilidade de um acontecimento; há neles a sugestão de um atuar.
 
É válido notar que Eleonore Koch dava início a seu processo investigativo-formal tomando como ponto de partida fotografias ou memórias visuais de seu mundo íntimo – paisagens, objetos, arranjos de flores –, suas “imagens de relance”, como ela mesma definiu. “O quadro começa a partir de um objeto real e as formas se repetem, sempre reelaboradas segundo minhas fantasias.” Partindo dessa ideia, calcada na realidade concreta, ela seguia obsessivamente traçando, apagando e retraçando linhas de grafite ou crayon sobre o papel em diversas variações, cada qual com sua individualidade e acento próprio. Depois de arranjado esse molde básico, eram exploradas novas possibilidades de disposição de formas, através da adição de recortes de papel, novas linhas e outras imagens de relance. A essa etapa seguia-se a introdução da cor, explorada em suas infinitas possibilidades, o que muitas vezes implicava noutros rearranjos, novas inserções e novos cortes, numa exploração compulsivamente angustiada de ordenação. Só então a artista partia para a fatura da tela propriamente dita. Nessa incessante organização compulsiva dos elementos residia seu trabalho criador. Ao ser fixado na tela, o trabalho ainda não conhecia propriamente uma conclusão, mas antes uma resolução temporária, à guisa de um crime não resolvido; a ideia permanece aberta a futuras reelaborações e retomadas. Nas obras aqui reproduzidas, podemos traçar pela primeira vez a trajetória desse lento processo, de imagem de relance à pintura, tornando-nos assim simultaneamente cumplices e observadores ocultos do sistema criativo da artista.
 
O desvelar do lento processo de depuração formal dos jardins, interiores, vasos, paisagens e marinhas de Eleonore Koch também nos aponta para o fato de que não estamos diante de uma artista que tenha o motivo representado como cerne de seu interesse, mas sim o seu manipular. Suas imagens são cenários do mundo, e seus temas pretexto de seu olhar. Em sua gana de ordenação das coisas, a artista revela inquietação pelo controle da cenografia do humano. Ao concentrar suas energias nessa ânsia organizativa, Koch logrou ordenar para si um mundo que na maior parte de sua vida, em seus desenvolvimentos históricos, foi dos mais desordenados. Na impossibilidade de controlar as coisas do mundo, Koch se contentou em ordenar sua própria subjetividade, tomando as imagens de relance do mundo de fora como princípio. Segundo Rosa Cass: “A pintura é, antes de tudo, sua [a de Eleonore Koch] forma de reelaborar o mundo, um modo de se conceder”. Talvez seja esse o motivo pelo qual seu trabalho nunca se oferece plenamente ao espectador; sempre resta algo de desconhecido por detrás de suas composições.
 
Fica evidente que os pormenores da biografia da artista desempenharam papel de relevância na constituição de sua sensibilidade visual. Nascida em Berlim em 1926, era filha de pais de sólida formação intelectual: sua mãe Adelheid Koch era psicanalista e seu pai Ernest Koch advogado. Ao lado da família, refugiou-se dos horrores do nazismo e chegou ao Brasil em 1936. Retornou para a Europa, mais especificamente para Paris, em 1949 para estudar escultura, e três anos depois, em 1951, voltou ao Brasil, onde trabalhou entre tantas outras ocupações como cenógrafa na extinta TV Tupi. Descontente com a impossibilidade de viver de sua pintura e com a incompreensão demonstrada pela crítica local, se autoexilou em 1968, transferindo-se para Londres, quando deu início ao período mais sofisticado de sua trajetória. Retornada ao Brasil em 1989, Koch deu continuidade a seu trabalho, mas não conheceu no país o reconhecimento que lhe era devido. De trato difícil, buscou ativamente um distanciamento de seus pares, restando cada vez mais isolada deles e do meio artístico brasileiro até sua morte em 2018. O que esses poucos dados biográficos nos indicam é que a solidão e o isolamento foram sempre necessidades de sua trajetória, bem como o distanciamento do mundo e o esvaziamento da presença humana se converteram em sua poética por excelência. Isolada e estrangeira, daqui, mas também de fora, foi cortada de seu meio, e fez como aqueles que perdem a audição ou a visão na vida adulta: aguçou os demais sentidos numa estratégia compensatória e lapidou ainda mais o seu fazer artístico; distanciada, afinou ainda mais o seu olhar. É este olhar reflexivo e alerta, de deslumbramento nas pequenices distantes, curtido ao longo de inúmeras solidões, ausências e retornos, que caracteriza a singularidade de sua produção.
 
Para finalizar, talvez valha a pena nos atermos a uma nova imagem, àquela conhecida por Eleonore em seus jovens anos, a da passagem do dirigível alemão Hindenburg por São Paulo, ocorrida em 1936, mesmo período de sua chegada ao Brasil. O alvoroço causado pelo avistamento desse monstro dos ares não foi pouco; o episódio foi amplamente noticiado nos jornais e avistado pela quase totalidade dos habitantes da cidade (1 milhão e 300 mil pessoas à época) desde os seus telhados e terraços. Gigante da tecnologia alemã e elemento fundamental da propaganda do governo nazista, quando avistado a distância tornava-se uma forma grande e sintética, leve e alta, ao mesmo tempo distanciada e distante, constituindo válida metáfora para a produção de Eleonore Koch: o incômodo de sua origem parte do valor da aproximação. Distanciada de seu meio e avistada por todos em sua lenta passagem, ela também permanece longínqua e inacessível, recuada e estranha, não obstante o revelar aqui feito de seu caminho criativo.

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